Embora a trama da série em análise se centre no desaparecimento do jovem Pedro e seja baseado em factos verídicos (caso do desaparecimento de Rui Pedro em Lousada há 24 anos e um dos casos por resolver mais misteriosos de desaparecimento de menores), o destaque vai todo para a progressiva "morte" de uma mãe, Isabel (Ana Moreira). A série "Sombra" realizada por Bruno Gascon e disponível na plataforma RTP Play apresenta-nos quatro episódios, dos quais vimos apenas um e carimbamos com selo de "superioridade" desde já. É simples, não só na mise-en-scène, mas na prestação de Ana Moreira - a roubar por completo os holofotes debaixo da sombra que atravessa e se materializa numa atmosfera de desespero contido, nada histérico, mas suave (como se fosse possível converter tal sentimento em algo de tal envergadura - o que nos leva tão somente para o papel da arte como almofada e a uma ténue fronteira entre a realidade e a ficção).
A penumbra é calcificada através de uma fotografia que nos hipnotiza e atordoa através dos silêncios e da ausência de um filho. Veja-se também a face de Ana Moreira ao longo de todo o episódio: existem olhos maquilhados a negro e lábios escarlate "coagulado" que, malogrados vatícinios se traduzirão provavelmente em beijos de sangue provocados por uma saudade de morte de um filho sem corpo e em "vida".
Tudo se processa em modo "flashback" e o trabalho de iluminação é foco central para que sirva de metáfora a uma perda que ainda parece pouco consciente, empedrada em defesas psicológicas e medos não traduzidos em palavras, mas na ausência da presença fantasmagórica de uma criança inocente. O verdadeiro terror, atroz, mas temperado com a candura e a pureza da arte para que o espectador abrace uma mãe despedaçada.
Muito se passa no espaço entre os binómios "delegar ou desconfiar"/ "negligência ou paranóia", particularmente no que toca na relação da mãe com a Polícia Judiciária - "eles não estão a fazer nada".
"Sombra" parece-nos um hino ao amor verdadeiro e incondicional - impenetrável, mesmo pela dor mais acutilante, ao contrário dos maus-tratos e desamor a que muitas crianças e jovens são sujeitas e a que, paradoxalmente, Pedro poderá ter sido já sujeito no cenário de rapto.
Existe, portanto, uma bolha de dor e sofrimento a que muitos parecem estar alheios - com excepção dada à figura da prostituta que parece "querer ajudar", mas que a PJ (prestação de assinalar de João Cabral) não releva e que deixa a pairar uma citação curiosa: "Sou puta, mas não sou mentirosa!".
A cena da chuva com que toda a equipa nos presenteia é absolutamente impressionante: uma mãe sozinha, apenas dedicada à esperança, como se fosse possível acreditar em Deus e ser ateia em simultâneo numa guerra psicológica sem precedentes.
Ana Moreira venceu o Prémio Sophia para Melhor Actriz 2022. Inesquecível.
Isabel (Ana Moreira)

