-SPOILERS-
É impossível esquecer os momentos contemplativos com uma banda sonora que parece reconstruir a obra de Angelo Badalamenti a cargo de Justin Melland (com um último episódio a superar todas as expectativas, tornando-se mesmo o melhor clímax e desfecho possíveis) da recente série que passou na RTP, "Cavsa Própria", pela mão de João Nuno Pinto.
A série está recheada de um elenco de luxo: Catarina Wallenstein, Nuno Lopes, Gonçalo Waddington, Maria Rueff, Ivo Canelas, Margarida Vila-Nova (entre outros) conjuntamente com a revelação de novos talentos, entre os quais se destaca Afonso Laginha como protagonista "David".
Em boa verdade, tudo se centra em torno deste misterioso carácter de David: um "vilão" subtil, de persona naif, modelado e marcado pela relação progressivamente destrutiva dos pais que culminou em divórcio em tenra idade do jovem. Tudo isso contribuiu para a formação de uma personalidade tolhida pela dor e uma cisão interna profunda, sendo que o violoncelo parece ser o refúgio e o lugar do seu ser pleno e integrado.
Na maior parte do tempo, David funciona pela metade: usando uma máscara manipuladora (veja-se a relação com a namorada, todo o seu comportamento em tribunal, a relação com a mãe protectora) decalcada e resultado da relação com o pai (inesquecível Ivo Canelas no papel de um Procurador irascível). Um pai narcisista e preocupado com o seu próprio umbigo que exigiu demasiado a David, sobretudo na sua masculinidade. E é aqui, queremos crer, que reside grande parte do gatilho e móbil para o crime. Nos complexos materno e paterno de David. Se a vítima, André, era homossexual e estava apaixonado por David e o poema de amor estava escrito no folheto dos ténis, sendo que violentamente David assassinou André e lhe retirou os ténis, em vez de o ajudar na sequência dos ferimentos pelos bullies e colegas de escola, é ir juntando as peças.
Ora o que é interessante é que David seria eventualmente a pessoa mais próxima de André. Estavam ambos a fazer um trabalho sobre o Imperativo Categórico de Immanuel Kant, isto é, sobre a existência de uma moral e ética que se colocam acima das situações mais duvidosas em que exista um conflito de valores, uma espécie de lei natural. E toda a série tem como pano de fundo essa filosofia e esse dilema, no fundo, a "causa própria" da mãe. A questão é: a mãe deveria entregar o filho e dizer a verdade, ainda para mais sendo juíza. Mas optou por desrespeitar esse imperativo devido ao amor que sente pelo filho.
TrailerRepare-se na cena em que Ana (Margarida Vila-Nova) revê os vídeos em bebé de David numa espécie de apelo à sua inocência e também sentimento de culpa familiar: não só pelo casamento ruinoso, mas também por encobrir um crime hediondo praticado pelo seu próprio filho.
Quem é, afinal, David? David é a sua própria sombra, isto é, tudo que tem reprimido e em potencial dentro de si mesmo: por isso só é fiel à sua essência ou quando toca violoncelo ou quando se refugia na torre. E neste sentido, falamos em Éden como "queda": uma queda para a verdade e para o conhecimento, como a serpente que oferece a maçã. E até num aspecto dúbio semi-redentor. Mas a complexidade do dilema moral é apavorante: por um lado salva-se David da prisão, inteligente e cheio de sonhos, no fundo, salvando-se um "artista", ainda que em final aberto, através de um amor incondicional de uma mãe. Por outro, perdeu-se a vida de forma hedionda de outro jovem sensível que foi violentado por colegas e culminou na sua morte por motivo semi-fútil: não não era a cobiça dos ténis, mas sim o que eles representavam. A ideia de "chão" e a ideia provavelmente dos próprios dilemas de sexualidade que David eventualmente poderia ter tido. É também a queda e a quebra da inocência, tal como no Jardim do Éden: a cena da prisão em que David está semi-nu e simula que toca violoncelo: já se deu a sua queda e o desespero. A diferença é que a mãe o liberta pela incondicionalidade do seu próprio seio.
Todo o último episódio é um murro no estômago, no sentido de que a contemplação rima com o dilema moral e deixa o espectador "médio" incomodado: a ocultação de provas por parte da mãe, o volte-face, a frieza de David (Afonso Laginha a superar-se) em Tribunal em contraste com a súplica na prisão "Ajuda-me mamã" e o facto de ter mentido e ter dito que era um acidente quando foi e não foi. Foi um impulso, sim. Mas foi encoberto: mas estava tudo em jogo. Mas apenas uma personalidade sociopata pode conceber viver o resto da vida com tal peso: veja-se o sorriso de David, no fundo um sorriso de liberdade acorrentada, quase fazendo lembrar a sequência de Joaquin Phoenix em "Joker" no carro da polícia. Fabulosa sequência após a libertação de David.
Existem vários jardins na série: o local do crime e o jardim da mãe. Esta ideia de "queda" é-lhes transversal, sem dúvida. Uma mãe que descobre e conhece finalmente o seu filho, diametralmente oposto à filha que inclusivamente David protege por esta ser "mais rebelde", ao contrário de si próprio: mais introvertido e um tanto ou quanto "perigoso" contra todas as expectativas. E, no fundo, é um jardim em que ocorre um crime paradoxalmente idílico (pelo menos na forma como é filmado).
A relação com o pai também é determinante, como já ficou brevemente referido. David tem um pai rígido: veja-se a cena do jantar em que David acaba por revelar de forma declarada a sua natureza reprimida ao apontar a faca ao pai. Num gesto que o pai encara como ex-libris de masculinidade em vez de estar atento àquele comportamento, sendo que é um alerta e não uma ideia de que "alguém lhe anda a fazer mal". No fundo, ninguém é inocente, assim como ninguém é culpado. David pode até ser, imagine-se, vítima das próprias circunstâncias. Um pouco como na ideia de abuso: quem foi abusado, mais tarde é o potencial abusador, sem desculpar obviamente as acções de David.
Ainda não confirmadas estão 2 novas temporadas da série.
Uma série subtil, filmada com qualidade cinematográfica. Há poucas "flores" destas neste jardim à beira mar plantado. Para ver e rever!
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