Tendo estado apenas em cartaz cerca de 2 semanas em Lisboa, o filme de estreia de Carlos Amaral ainda não foi visionado pelo Cinelusoculto, no entanto, vimos por este meio fazer uma honrosa antecipação para quando o filme ficar disponível na íntegra. Categorizado por muitos como um filme de ficção científica - pouco usual no meio cinematográfico como o português - "Mar Infinito" parece ser um daqueles mergulhos inefáveis e inquestionáveis nas profundezas da alma e numa ideia de "inadaptação" ou "deslocamento/fractura" contidas.
Sendo um filme aparentemente pouco adequado para ver no Verão, talvez faça até mais sentido vê-lo numa noite tropical introspectiva ou já numa noite de Outono provavelmente acompanhada de chuva.
A graciosidade do trailer é sintomática de uma subtileza inegável e quase "premonitória". Curiosamente, o mar é infinito, mas ao olharmos para o firmamento encontramos a finitude do protagonista (interpretado pelo assumido actor fétiche deste blog, Nuno Nolasco) e uma relação atípica que se estabelece entre a personagem interpretada pela actriz Maria Leite.
Trailer
Resta-nos, por agora, o acesso à contemplativa banda sonora a cargo de Miguel Santos, através da plataforma bandcamp, onde podem apoiar:
Embora a trama da série em análise se centre no desaparecimento do jovem Pedro e seja baseado em factos verídicos (caso do desaparecimento de Rui Pedro em Lousada há 24 anos e um dos casos por resolver mais misteriosos de desaparecimento de menores), o destaque vai todo para a progressiva "morte" de uma mãe, Isabel (Ana Moreira). A série "Sombra" realizada por Bruno Gascon e disponível na plataforma RTP Play apresenta-nos quatro episódios, dos quais vimos apenas um e carimbamos com selo de "superioridade" desde já. É simples, não só na mise-en-scène, mas na prestação de Ana Moreira - a roubar por completo os holofotes debaixo da sombra que atravessa e se materializa numa atmosfera de desespero contido, nada histérico, mas suave (como se fosse possível converter tal sentimento em algo de tal envergadura - o que nos leva tão somente para o papel da arte como almofada e a uma ténue fronteira entre a realidade e a ficção).
A penumbra é calcificada através de uma fotografia que nos hipnotiza e atordoa através dos silêncios e da ausência de um filho. Veja-se também a face de Ana Moreira ao longo de todo o episódio: existem olhos maquilhados a negro e lábios escarlate "coagulado" que, malogrados vatícinios se traduzirão provavelmente em beijos de sangue provocados por uma saudade de morte de um filho sem corpo e em "vida".
Tudo se processa em modo "flashback" e o trabalho de iluminação é foco central para que sirva de metáfora a uma perda que ainda parece pouco consciente, empedrada em defesas psicológicas e medos não traduzidos em palavras, mas na ausência da presença fantasmagórica de uma criança inocente. O verdadeiro terror, atroz, mas temperado com a candura e a pureza da arte para que o espectador abrace uma mãe despedaçada.
Muito se passa no espaço entre os binómios "delegar ou desconfiar"/ "negligência ou paranóia", particularmente no que toca na relação da mãe com a Polícia Judiciária - "eles não estão a fazer nada".
"Sombra" parece-nos um hino ao amor verdadeiro e incondicional - impenetrável, mesmo pela dor mais acutilante, ao contrário dos maus-tratos e desamor a que muitas crianças e jovens são sujeitas e a que, paradoxalmente, Pedro poderá ter sido já sujeito no cenário de rapto.
Existe, portanto, uma bolha de dor e sofrimento a que muitos parecem estar alheios - com excepção dada à figura da prostituta que parece "querer ajudar", mas que a PJ (prestação de assinalar de João Cabral) não releva e que deixa a pairar uma citação curiosa: "Sou puta, mas não sou mentirosa!".
A cena da chuva com que toda a equipa nos presenteia é absolutamente impressionante: uma mãe sozinha, apenas dedicada à esperança, como se fosse possível acreditar em Deus e ser ateia em simultâneo numa guerra psicológica sem precedentes.
Ana Moreira venceu o Prémio Sophia para Melhor Actriz 2022. Inesquecível.
O multi-premiado filme de Miguel Gomes, Tabu (2012) é poesia na imagem e na palavra desde o primeiro segundo. Dramático, é um filme que na sua negritude se entranha no âmago do espectador, mesmo no mais desatento.
Pilar
Tabu está dividido em duas partes: Paraíso Perdido e Paraíso, uma dolorosa opção narrativa entre passado/presente centrada na vida da protagonista Aurora (Laura Soveral) e dois diferentes cenários: Lisboa (realista) e África (romantizada). Aurora, já idosa, vive em Lisboa com a sua empregada negra, Santa (Isabel Cardoso) e passa os dias a perder dinheiro no Casino e deprimida. Solitária, tem uma filha emigrada no Canadá. No mesmo prédio, vive Pilar (Teresa Madruga), uma activista de meia-idade solitária que adora cinema, generosa e que sai às vezes com um amigo que é um pintor frustrado. É este o Paraíso Perdido. Eis que Aurora adoece e pede a Santa e Pilar para procurarem um misterioso homem chamado Ventura (Henrique Espírito Santo). Ele narra-nos a verdadeira história de Tabu, uma trágica história de amor e uma história maior, um reflexo da história colonial, em modo sinédoque. Existe afinal, Paraíso, Purgatório e Inferno, passados em África, no Monte Tabu, a juventude de Aurora (Ana Moreira) e o seu envolvimento com Ventura (Carloto Cotta), formando um fatídico triângulo amoroso com o seu marido.
Aurora e Ventura
O uso do preto e branco de forma incontestavelmente elegante e clássica apela a um permanente sentimento de nostalgia, a um tempo que não mais volta, a uma memória perdida para sempre. De assinalar o facto de na segunda parte do filme existir silêncio nos diálogos, como se o espectador não pudesse ouvir o que as personagens dizem porque é omnisciente, já que lhes lê os pensamentos, absorvidos da primeira parte perdida.
Tabu retrata ainda a perda e a solidão do mundo moderno de forma cinzenta e melancólica, o envelhecimento como claustrofobia, as limitações de liberdade e até mesmo o abandono.
Aurora
A banda sonora é magistral, particularmente o tema de piano.
O elenco é de excelência, destacando-se a prestação, a meu ver, de Teresa Madruga e não é por acaso. Esta é uma personagem que faz a ligação das duas partes, sobretudo através das suas idas ao cinema. Ela é, tal como nós, espectadora. Emociona-se e na sua ingenuidade, inocência vai ouvindo o som de outro tempo, mas no presente: "Be my baby", The Ronettes, fazendo a ponte entre Lisboa e o Monte Tabu. Entre a realidade e o sonho.
Miguel Gomes é exemplar na realização, a fotografia é belíssima e o argumento de Miguel Gomes e Mariana Ricardo é poético e apesar da divisão do filme, não é fragmentário. Um belíssimo filme.
Fica-nos a certeza que nadará para sempre no lago do Monte Tabu o crocodilo Dundee...e resta-nos no final um soco no estômago. Silencioso.
É impossível esquecer os momentos contemplativos com uma banda sonora que parece reconstruir a obra de Angelo Badalamenti a cargo de Justin Melland (com um último episódio a superar todas as expectativas, tornando-se mesmo o melhor clímax e desfecho possíveis) da recente série que passou na RTP, "Cavsa Própria", pela mão de João Nuno Pinto.
A série está recheada de um elenco de luxo: Catarina Wallenstein, Nuno Lopes, Gonçalo Waddington, Maria Rueff, Ivo Canelas, Margarida Vila-Nova (entre outros) conjuntamente com a revelação de novos talentos, entre os quais se destaca Afonso Laginha como protagonista "David".
Em boa verdade, tudo se centra em torno deste misterioso carácter de David: um "vilão" subtil, de persona naif, modelado e marcado pela relação progressivamente destrutiva dos pais que culminou em divórcio em tenra idade do jovem. Tudo isso contribuiu para a formação de uma personalidade tolhida pela dor e uma cisão interna profunda, sendo que o violoncelo parece ser o refúgio e o lugar do seu ser pleno e integrado.
Na maior parte do tempo, David funciona pela metade: usando uma máscara manipuladora (veja-se a relação com a namorada, todo o seu comportamento em tribunal, a relação com a mãe protectora) decalcada e resultado da relação com o pai (inesquecível Ivo Canelas no papel de um Procurador irascível). Um pai narcisista e preocupado com o seu próprio umbigo que exigiu demasiado a David, sobretudo na sua masculinidade. E é aqui, queremos crer, que reside grande parte do gatilho e móbil para o crime. Nos complexos materno e paterno de David. Se a vítima, André, era homossexual e estava apaixonado por David e o poema de amor estava escrito no folheto dos ténis, sendo que violentamente David assassinou André e lhe retirou os ténis, em vez de o ajudar na sequência dos ferimentos pelos bullies e colegas de escola, é ir juntando as peças.
Ora o que é interessante é que David seria eventualmente a pessoa mais próxima de André. Estavam ambos a fazer um trabalho sobre o Imperativo Categórico de Immanuel Kant, isto é, sobre a existência de uma moral e ética que se colocam acima das situações mais duvidosas em que exista um conflito de valores, uma espécie de lei natural. E toda a série tem como pano de fundo essa filosofia e esse dilema, no fundo, a "causa própria" da mãe. A questão é: a mãe deveria entregar o filho e dizer a verdade, ainda para mais sendo juíza. Mas optou por desrespeitar esse imperativo devido ao amor que sente pelo filho.
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Repare-se na cena em que Ana (Margarida Vila-Nova) revê os vídeos em bebé de David numa espécie de apelo à sua inocência e também sentimento de culpa familiar: não só pelo casamento ruinoso, mas também por encobrir um crime hediondo praticado pelo seu próprio filho.
Quem é, afinal, David? David é a sua própria sombra, isto é, tudo que tem reprimido e em potencial dentro de si mesmo: por isso só é fiel à sua essência ou quando toca violoncelo ou quando se refugia na torre. E neste sentido, falamos em Éden como "queda": uma queda para a verdade e para o conhecimento, como a serpente que oferece a maçã. E até num aspecto dúbio semi-redentor. Mas a complexidade do dilema moral é apavorante: por um lado salva-se David da prisão, inteligente e cheio de sonhos, no fundo, salvando-se um "artista", ainda que em final aberto, através de um amor incondicional de uma mãe. Por outro, perdeu-se a vida de forma hedionda de outro jovem sensível que foi violentado por colegas e culminou na sua morte por motivo semi-fútil: não não era a cobiça dos ténis, mas sim o que eles representavam. A ideia de "chão" e a ideia provavelmente dos próprios dilemas de sexualidade que David eventualmente poderia ter tido. É também a queda e a quebra da inocência, tal como no Jardim do Éden: a cena da prisão em que David está semi-nu e simula que toca violoncelo: já se deu a sua queda e o desespero. A diferença é que a mãe o liberta pela incondicionalidade do seu próprio seio.
Todo o último episódio é um murro no estômago, no sentido de que a contemplação rima com o dilema moral e deixa o espectador "médio" incomodado: a ocultação de provas por parte da mãe, o volte-face, a frieza de David (Afonso Laginha a superar-se) em Tribunal em contraste com a súplica na prisão "Ajuda-me mamã" e o facto de ter mentido e ter dito que era um acidente quando foi e não foi. Foi um impulso, sim. Mas foi encoberto: mas estava tudo em jogo. Mas apenas uma personalidade sociopata pode conceber viver o resto da vida com tal peso: veja-se o sorriso de David, no fundo um sorriso de liberdade acorrentada, quase fazendo lembrar a sequência de Joaquin Phoenix em "Joker" no carro da polícia. Fabulosa sequência após a libertação de David.
Existem vários jardins na série: o local do crime e o jardim da mãe. Esta ideia de "queda" é-lhes transversal, sem dúvida. Uma mãe que descobre e conhece finalmente o seu filho, diametralmente oposto à filha que inclusivamente David protege por esta ser "mais rebelde", ao contrário de si próprio: mais introvertido e um tanto ou quanto "perigoso" contra todas as expectativas. E, no fundo, é um jardim em que ocorre um crime paradoxalmente idílico (pelo menos na forma como é filmado).
A relação com o pai também é determinante, como já ficou brevemente referido. David tem um pai rígido: veja-se a cena do jantar em que David acaba por revelar de forma declarada a sua natureza reprimida ao apontar a faca ao pai. Num gesto que o pai encara como ex-libris de masculinidade em vez de estar atento àquele comportamento, sendo que é um alerta e não uma ideia de que "alguém lhe anda a fazer mal". No fundo, ninguém é inocente, assim como ninguém é culpado. David pode até ser, imagine-se, vítima das próprias circunstâncias. Um pouco como na ideia de abuso: quem foi abusado, mais tarde é o potencial abusador, sem desculpar obviamente as acções de David.
Ainda não confirmadas estão 2 novas temporadas da série.
Uma série subtil, filmada com qualidade cinematográfica. Há poucas "flores" destas neste jardim à beira mar plantado. Para ver e rever!
"Casos e Casos" abre a série de episódios mais ou menos suspeita (quiçá duvidosa) que parte da trupe do colectivo musical Cuca Monga andou a engendrar no ano passado sob a ideia original de Gonçalo Perestrelo e Francisco Ferreira (nas horas vagas em pleno set do filme concerto da incontornável banda Capitão Fausto - "Sol Posto" realizado por Ricardo Oliveira).
15 minutos de curta "de chorar" por mais
Quem não é fã de David Lynch dificilmente perceberá a homenagem "descarada" e redimensionada feita por toda a equipa a "Twin Peaks" e muitas outras referências mais ou menos óbvias. Mas não ficam por aqui. A ideia de novela mexicana com dobragem "puxa-se o autoclismo, ouve-se 2 segundos depois" faz com que "O Segredo Mendonça" ganhe uma camada humorística adicional. O exagero em harmonia com a contenção funciona de forma divertida, leve e simples. A banda sonora é apaixonante.
São 15 minutos de uma curta de culto inesquecível sendo que nenhum dos intervenientes se assume directamente como actor e onde a ficção se cola à realidade com um sentido de auto-crítica e ideia de rirmos de nós mesmos absolutamente premente como mensagem válida para o espectador para além do mais puro entretenimento e comunhão de um grupo talentoso de amigos.
Nesta reflexão, em vez do habitual texto corrido, optámos por fazer uma "cerimónia de galardões": os "Prémios Mendonça". E os vencedores são:
- Melhor Fotografia (tirada e revelada no ecrã): Tomás Wallenstein
- Melhores quotes: "Eu dou-te tudo!"
"Toma o chapéu!"
"Cheirinho a defunto pela manhã"
"Isto podia ter sido asfixiação"
"Ainda não digeri"
"O Sr. está a esconder o churro por baixo dos lençóis"
"Há coisas que cheiram a esturro e esta cheira a bosta"
"Vocês não têm o direito de 'tarem aqui"
"A verdade ficará entre nós"
"Nós temos listas, 'tá bem?"
"Sou um homem-troféu pa ti!"
"Tu já não me tocas"
"Tás sempre fora a trabalhar"
"Sim, mas não"
"Eu amo-te. Mesmo. Muito."
- Melhor actor categoria drama: Horse, particularmente na cena do chuveiro
- Melhor olhar de soslaio para o espectador: Maegis
- Melhor bebida: café
- Melhor atropelamento com sobreviventes e best quote: "palhaço, sai da frente!"
- Melhor sequência de automóvel conduzido a velocidade moderada: abanões de Manuel Palha como efeito especial na lateral
- Melhor cena melancólica: Manuel Palha ao piano antes do interrogatório
- Melhores palavras há muito tempo não ouvidas no ecrã: "Assunto Pesaroso"
- Melhor entrada sub-reptícia: Salvador Seabra de vermelho
- Melhor casal: Sr. Mendonça e Sr. Mendonça
- Melhor beijo: Sr. Mendonça e Sr. Mendonça
- Melhor cena: lua cheia
- Melhor homenagem a Alfred Hitchcock: sequência nocturna final
- Melhor cena aquática: Sr. Mendonça a boiar
- Melhor mal-entendido: todo o caso, sendo que "há casos e casos"
O rascunho desta reflexão foi escrito à mão, em papel e com caneta, ao som do tema "Pensamos no Futuro amanhã" da série "1986" (2018) em repeat, a partir de um telemóvel e da plataforma de vídeos YouTube, num café de bairro, pleno de pessoas envelhecidas que seguramente viveram de alguma forma o ano de 1986.
Nasci no segundo semestre de 1986, pelo que apenas absorvi de forma inconsciente resquícios desse ano: sons, cores, cheiros, sabores e texturas. Tudo aconteceu e ainda acontece através de experiência mediata em relação aos anos 80. Mas "1986" não é uma série fechada no seu tempo, apesar de não ser atemporal. No entanto, torna-se intemporal a cada episódio. O que é afinal o tempo e o espaço? É provavelmente uma mera dimensão psicológica, daí que seja infrutífero ser demasiado exigente com o que "1986" deve ou não representar, devendo antes fazer mais sentido, o que a série nos deverá fazer sentir. Especialmente se considerarmos "O" espaço que tanto motiva Marta - a miúda "betinha" e não só - (Laura Dutra) a sonhar com um futuro (im)possível, cheio de buracos negros e imprevisibilidade e que a une de forma improvável (?) a Tiago, o geek inadaptado (Miguel Moura e Silva) no visionamento do firmamento onde o amor cândido desabrocha e vai ultrapassando as mais diversas peripécias e barreiras em pleno cenário de agitadíssimas eleições presidenciais Freitas do Amaral vs. Mário Soares.
Marta
Mas não podia faltar o grupo de personagens que vão viver desafios concomitantemente: Patrícia (Eva Fisahn) é a miúda gótica, Sérgio (Miguel Partidário) é o metaleiro e Gonçalo o beto rufia/bully da mota (Henrique Gil). Todas personagens mais ou menos tipo, ainda que possam ser previsíveis por vezes, mas sempre multi-dimensionais, isto é, com relevo, desenham com o pincel da nostalgia um sorriso no espectador, comovendo com as suas idiossincrasias e passam por aventuras e desventuras para tudo mudar e, para ao fim ao cabo tudo ficar na mesma. Não somos todos nós uma evolução de nós próprios? Será que mudamos realmente? Talvez apenas nos aproximemos uns dos outros, derrubemos muros, afinal de contas em 1986 ainda existia o muro de Berlim, representativo disso é o pai de Tiago (Adriano Carvalho) e o pai de Marta (Gustavo Vargas): o último episódio é sintomático disso. Em "1986" as dores de crescimento da adolescência surgem amortecidas pelos recursos culturais evidentes de uma juventude que se refugia em variadas referências cinematográficas, musicais e educacionais. No fundo, aqui surge erigido o "mundo markliano" que muitos de nós já conhecemos.
As cinco personagens centrais de 1986
"1986" tem ainda o condão de nos fazer reflectir sobre uma era em que não havia o digital e como as relações eram sincopadas e, talvez mais lentas e mais mágicas: a rádio, o jornal Blitz, o telefone fixo, a ausência de Internet, a existência rara de câmaras de filmar. Aliás, o episódio em que Sérgio utiliza a câmara de filmar do pai (o próprio Nuno Markl) é uma espécie de alusão à era digital e ao poder do smartphone e ao irrisório do conteúdo partilhado através de VHS, ainda para mais com conteúdo duvidoso adicional (pornografia do Videoclube de que é dono o pai de Marta). E assim se vão introduzindo também temas como a sexualidade na adolescência, de forma cómica, suave e sobretudo, com toda a naturalidade, como esta deve ser tratada. "1986" é uma comédia agridoce e, não sendo original, tem imensas referências sendo que "Freaks & Geeks" de Paul Feig tem algumas semelhanças e há inúmeras outras referências.
Relativamente a questões técnicas: o décor é exímio, bem como o guarda-roupa e todos os pormenores de época, não sendo uma série que "cheira a bafio", ou seja, não é monótona nas suas escolhas, talvez porque existe a tal ideia de contemporaneidade temperada por um excelente bom gosto.
O casting de Patrícia Vasconcelos também encontrou uma química equilibrada, particularmente no elenco das cinco personagens principais.
A banda sonora é outro ponto forte, com a originalidade de captar uma sonoridade 80's com artistas contemporâneos, agarrando-nos de imediato, contando com Ana Bacalhau, Catarina Salinas, David Fonseca, João Só, Lena D' Água, Miguel Araújo, Rita Redshoes e Samuel Úria.
Tiago no centro de 1986
Se aos primeiros episódios existe, devo confessar, alguma estranheza nos primeiros diálogos e algumas personagens, com o avançar da série, tudo isso se dissipa, havendo um crescendo no plot e nas prestações, havendo o efeito de colagem do espectador ao ecrã. É uma série que, sendo disponibilizada em streaming no site da RTP play quase obriga a um visionamento de um fôlego só e, no final, sabe a pouco e fica um pedido mais do que "tácito" do espectador de uma segunda série.
Nuno Markl, Ana Markl, Filipe Homem Fonseca e Joana Stichini Vilela (argumento) juntamente com a realização de Henrique Oliveira presentearam-nos com um objecto televisivo de grande qualidade.
Com esta passagem por 1986, fica o desejo nostálgico de querermos viver para sempre...rebobinemos!