1986
Nasci no segundo semestre de 1986, pelo que apenas absorvi de forma inconsciente resquícios desse ano: sons, cores, cheiros, sabores e texturas. Tudo aconteceu e ainda acontece através de experiência mediata em relação aos anos 80. Mas "1986" não é uma série fechada no seu tempo, apesar de não ser atemporal. No entanto, torna-se intemporal a cada episódio. O que é afinal o tempo e o espaço? É provavelmente uma mera dimensão psicológica, daí que seja infrutífero ser demasiado exigente com o que "1986" deve ou não representar, devendo antes fazer mais sentido, o que a série nos deverá fazer sentir. Especialmente se considerarmos "O" espaço que tanto motiva Marta - a miúda "betinha" e não só - (Laura Dutra) a sonhar com um futuro (im)possível, cheio de buracos negros e imprevisibilidade e que a une de forma improvável (?) a Tiago, o geek inadaptado (Miguel Moura e Silva) no visionamento do firmamento onde o amor cândido desabrocha e vai ultrapassando as mais diversas peripécias e barreiras em pleno cenário de agitadíssimas eleições presidenciais Freitas do Amaral vs. Mário Soares.
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| Marta |
Mas não podia faltar o grupo de personagens que vão viver desafios concomitantemente: Patrícia (Eva Fisahn) é a miúda gótica, Sérgio (Miguel Partidário) é o metaleiro e Gonçalo o beto rufia/bully da mota (Henrique Gil). Todas personagens mais ou menos tipo, ainda que possam ser previsíveis por vezes, mas sempre multi-dimensionais, isto é, com relevo, desenham com o pincel da nostalgia um sorriso no espectador, comovendo com as suas idiossincrasias e passam por aventuras e desventuras para tudo mudar e, para ao fim ao cabo tudo ficar na mesma. Não somos todos nós uma evolução de nós próprios? Será que mudamos realmente? Talvez apenas nos aproximemos uns dos outros, derrubemos muros, afinal de contas em 1986 ainda existia o muro de Berlim, representativo disso é o pai de Tiago (Adriano Carvalho) e o pai de Marta (Gustavo Vargas): o último episódio é sintomático disso. Em "1986" as dores de crescimento da adolescência surgem amortecidas pelos recursos culturais evidentes de uma juventude que se refugia em variadas referências cinematográficas, musicais e educacionais. No fundo, aqui surge erigido o "mundo markliano" que muitos de nós já conhecemos.
"1986" tem ainda o condão de nos fazer reflectir sobre uma era em que não havia o digital e como as relações eram sincopadas e, talvez mais lentas e mais mágicas: a rádio, o jornal Blitz, o telefone fixo, a ausência de Internet, a existência rara de câmaras de filmar. Aliás, o episódio em que Sérgio utiliza a câmara de filmar do pai (o próprio Nuno Markl) é uma espécie de alusão à era digital e ao poder do smartphone e ao irrisório do conteúdo partilhado através de VHS, ainda para mais com conteúdo duvidoso adicional (pornografia do Videoclube de que é dono o pai de Marta). E assim se vão introduzindo também temas como a sexualidade na adolescência, de forma cómica, suave e sobretudo, com toda a naturalidade, como esta deve ser tratada. "1986" é uma comédia agridoce e, não sendo original, tem imensas referências sendo que "Freaks & Geeks" de Paul Feig tem algumas semelhanças e há inúmeras outras referências.
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| As cinco personagens centrais de 1986 |
Relativamente a questões técnicas: o décor é exímio, bem como o guarda-roupa e todos os pormenores de época, não sendo uma série que "cheira a bafio", ou seja, não é monótona nas suas escolhas, talvez porque existe a tal ideia de contemporaneidade temperada por um excelente bom gosto.
O casting de Patrícia Vasconcelos também encontrou uma química equilibrada, particularmente no elenco das cinco personagens principais.
A banda sonora é outro ponto forte, com a originalidade de captar uma sonoridade 80's com artistas contemporâneos, agarrando-nos de imediato, contando com Ana Bacalhau, Catarina Salinas, David Fonseca, João Só, Lena D' Água, Miguel Araújo, Rita Redshoes e Samuel Úria.
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| Tiago no centro de 1986 |
Se aos primeiros episódios existe, devo confessar, alguma estranheza nos primeiros diálogos e algumas personagens, com o avançar da série, tudo isso se dissipa, havendo um crescendo no plot e nas prestações, havendo o efeito de colagem do espectador ao ecrã. É uma série que, sendo disponibilizada em streaming no site da RTP play quase obriga a um visionamento de um fôlego só e, no final, sabe a pouco e fica um pedido mais do que "tácito" do espectador de uma segunda série.
Nuno Markl, Ana Markl, Filipe Homem Fonseca e Joana Stichini Vilela (argumento) juntamente com a realização de Henrique Oliveira presentearam-nos com um objecto televisivo de grande qualidade.




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