Entre as 16 curtas presentes no Festival Internacional de Cinema de Roterdão encontrava-se "Madrugada" (Dawn) na secção de curtas Ammodo Tiger. Apesar de não ter vencido um dos três prémios na respectiva secção, é uma curta-metragem realizada por Leonor Noivo que prima pela subtileza desde o primeiro segundo. A premissa é singela, tal como a beleza da Natureza que a equipa se propôs retratar: Maria desapareceu, trabalhava numa Residencial sombria e a sua filha tenta reconstruir o que se terá, afinal, passado com a mãe num retrato de uma relação quase silenciosa entre uma mãe que se degradou progressivamente pelo incumprimento do seu papel enquanto mulher: "Eu tenho raízes", afirma. Impossível não associar a curta a uma ideia quase perdida do papel feminino ligado ao telúrico e a sua degradação numa sociedade capitalista complexa em que a classe trabalhadora trabalha de sol a sol, a meia luz, entrando e "saindo" de madrugada.
A água final "imprópria para banho" - não mais que uma água transformadora - na qual Maria eventualmente mergulha as suas "escamas", bem como o seu desejo de ser peixe, e se faz então ser anfíbio forçado, rejuvenescendo através de crianças e jovens salutares, em sério contraste com a sua erosão física e emocional da eterna insatisfação resultante do incumprimento do seu papel essencial enquanto mulher e ser humano.
Maria nunca dorme e, talvez, em clara psicose, tudo se precipite para um final esperado: a morte (ou renascimento) num travestir de metáfora para os extremos da sociedade capitalista, o isolamento, a quebra das relações familiares, as crenças profundamente arreigadas de um passado que insiste em impermeabilizar um futuro fluído.
Maria é um grito mudo, um pedido de socorro. Isabel, sua filha, percorre-lhe as pegadas num filme que tem variadas referências, intencionais ou não: desde "Noite Escura" (2004) de João Canijo, aqui quase numa ideia de "prostituição" bem mais requintada e quase tão destrutiva que a real prostituição, lenta e cortante porque muda e em câmara lenta, a "Lost Highway" (1997) de David Lynch.
Aqui todo o feminino sacrificado e deformado é filmado. Sem pompa, mas com toda a circunstância. E é isso mesmo que o filme é: circunstancial - desde o cadáver sobre a cama na Residencial aos testemunhos das mulheres que trabalham no local.
A noite e o dia, o solar e o lunar: o dióxido de carbono das plantas que asfixia Maria que estão e não estão presentes num dos parcos diálogos entre mãe e filha em casa.
Leonor Noivo filma ainda uma ideia de liberdade acorrentada com extraordinário bom gosto: uma realidade crua e nua, mas embelezada pela natureza dos riachos, das copas das árvores e até das escamas de Maria. É uma ode ao envelhecimento precoce, ao vazio e aos perigos dessa (ir)realidade, às vidas que ficam pelo caminho. Está longe de ser um filme com leveza, mas tem tudo de beleza. A beleza da rotina e o desejo de uma personagem de ter apenas uma vida plena e feliz, mediada pela simplicidade, in extremis, encontrada quiçá, numa morte física e simbólica pois muito da mise en scene é, provavelmente, projecção e não realidade.
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