sábado, 22 de janeiro de 2022

"Eu não sei amar, mas sei o que é"



   O Barão

Em memória do actor Nuno Melo (1960-2015)

   "O Barão" (2011) foi inicialmente escrito por Branquinho da Fonseca em 1942. No ano seguinte, Valerie Lewton, uma produtora americana de filmes série B tomou contacto com a obra e observou potencial num filme de terror, tendo iniciado de forma secreta a rodagem numa fábrica do Barreiro em Portugal. Descobertos pelo regime devido ao retrato de uma figura ditatorial, a produtora e a equipa técnica viram-se obrigadas a destruir os negativos e foram repatriadas e os actores portugueses enviados para o Tarrafal onde acabariam por falecer.

O Barão


   Já em 2005, parte do material rodado e o guião do filme foram descobertos. Desta forma, Edgar Pêra (o realizador) decidiu proceder ao remake da obra original, trazendo-nos a história de um barão déspota que vive e controla a região da Serra do Barroso.

O Barão


O Barão

   "O Barão" traz-nos a história de um Inspector (Marcos Barbosa) das escolas de instrução primária que é nómada, odiando viajar e que preferia estar acomodado a uma vida pacata, mas que não o faz por necessidade de vencimentos e por não ter ninguém que o espere. Esta personagem constitui o narrador na obra de Branquinho da Fonseca e um dos pólos da dicotomia que é vivida no filme: presente (Inspector)/passado (Barão) que está de visita a Barroso e toma contacto forçado com o estranho Barão. O Barão (Nuno Melo) é um ser temperamental que escraviza a população de Barroso, no Norte de Portugal, sendo um tirano. No entanto, tem uma natureza dupla: consegue também ser dócil e infantil, ao mesmo tempo que instável e impenetrável emocionalmente.

Idalina e o Barão


   Arrastando-se pelo castelo do Barão existe uma terceira personagem, desta vez feminina, de seu nome Idalina (Leonor Keil) que aparenta ser serva do Barão e aqui a palavra certa é mesmo aparenta, não fosse o segredo estar guardado no final do filme. Afinal o déspota, que tudo quer, pode e manda, é, no fundo um falso marialva romântico despedaçado e de uma mulher só - "Aqui quem manda sou eu"- afinal nada manda. Nem no seu coração estilhaçado. "E é como uma facada". Restando os espinhos da rosa branca que procura deixar à sua Bela Acorrentada e a inevitável queda, uma morte anunciada e um momento em que vive por momentos no momento em que é beijado pela sua amada, no leito da morte draculesca.

A Tuna e o Barão


    O Barão e a sua dualidade são evidentes e aquela parece uma noite sem fim, de mútuas confidências: o aspecto teatral é evidente e a fabulosa interpretação de Nuno Melo é assombrosa, não bastasse o argumento de Luísa Costa Gomes e Edgar Pêra ser prodigioso. Relativamente aos cenários, também existe originalidade recriando-se interior-exterior de forma interessante. A banda sonora a cargo de Vozes da Rádio, a Tuna no filme, dá um sentimento de genuinidade atmosférica.
A fotografia a cargo de Luís Branquinho também é fabulosa, embora a montagem por vezes se possa tornar excessivamente movimentada, isto é, com demasiados estímulos para o espectador: planos, contra-planos, legendas em Inglês, banda sonora, sobreposição de planos etc, o que pode resultar em algum cansaço. Por vezes alguma simplicidade poderia ter sido preferível. De destacar, a cena da tuna e da dança dos três personagens embriagados, uma espécie de fusão de todos os mundos: o racional com o irracional, a unidade.

   Podemos identificar algumas possíveis parecenças do trabalho de Pêra com o trabalho de outros realizadores, nomeadamente Welles, Murnau ou até mesmo Lynch.

   Em conclusão, este Barão acaba por ser um ser em permanente show-off, aparentemente forte e temível (pelo poder nominal de que dispõe), mas intimamente vulnerável, de personalidade irascível, mas volátil, independente, mas completamente carente e despedaçado. Representante da decadência humana, uma figura que desistiu da luz e que vive amargurada, um Nosferatu que clama a sua dor de forma aberrante. E o amor..."dói, mas digo". Obrigatório.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

O "tino" do coração


O (Diaman)TINO do coração



“Não tens nada na cabeça” afirmam as manas maléficas (aterradoras Anabela e Margarida Moreira) de Diamantino (inesquecível e irrepreensível Carloto Cotta) no filme "Diamantino" de 2018. Na realidade, o mais famoso e quási-Miguel Ângelo dos relvados pouco mais tem do que lugares de infância remotos: os famigerados “cachorrinhos felpudos” em cenários entre o roxo e o rosa a avançar no campo como se pudéssemos sentir a doçura de algodão, bem como um coração cheio de amor verdadeiro a transbordar. Primeiro, amor por um “fugiadinho”, depois por Aisha (camaleónica Cleo Tavares) e finalmente um triunfante amor por si mesmo. Não será, pois, esse o mais importante e profundo tipo de amor? Replicando e transmitindo em espelho a grande lição que o seu próprio pai na primeira parte do filme lhe transmite de forma premente – o lema de acreditar em si próprio? 

Trailer de "Diamantino"



Nesta acepção, Diamantino ganha uma dimensão quase religiosa e profunda, apesar de ser leve e espirituoso – as palavras iniciais remontam para a arte das catedrais, agora transmutadas para imponentes estádios de futebol onde a grande religião já não é feita com Deus, mas com o esférico sobre a relva, através da exteriorização (sinais dos tempos). É neste cenário que surge Diamantino, jovial e inocente, a executar autêntico “religare”, no sentido de interioridade, (des)conectado e quase isolado do mundo exterior – e não é isso que, acaba por ser a sua salvação, afinal? Esse herói naif, essa criança interior intacta, virginal, apesar do corpo escultural e materialista (veja-se o seu carro potente, mas em simultâneo a sua casa antiga e o dinossauro no tecto do quarto de Rahim, em notório anacronismo e concretização em duplicidade de ancestralidade e actualidade).

Diamantino


Diamantino é um diamante em bruto e como pedra preciosa que é, demonstra uma personalidade de génio, sendo cobiçado(a) e aquando da análise do seu cérebro pela Dra. Lamborghini (Carla Maciel), os seus níveis de compaixão são notórios. Não haverá aqui um claro alinhamento, vulgo bom coração? Nas palavras de Gabriel Abrantes (um dos realizadores) na ante-estreia do filme em Lisboa no cinema Monumental: era importante retratar a afectividade notória na personagem de Diamantino e a sua simplicidade e entre gargalhadas profundas em cenas aparentemente superficiais, encontramos talvez o verdadeiro segredo do génio de Diamantino: a sensibilidade, sobretudo a sensibilidade do momento ou não fizesse ele “cara de peixe” para a fotografia, entre beijinhos à esquimó, bongos e crepes com nutella e carícias ao gato Piruças.

Diamantino e Rahim/Aisha


Diamantino


Se “Diamantino” começa por satirizar o mundo cansativo das celebridades que usam o virtue-signaling a seu bel-prazer, mas transmutado numa credulidade genuína do personagem principal na adopção de crianças por caridade para expurgar os pecados de uma vida de luxos e ostentação, numa segunda análise permite perceber a verdadeira dimensão do amor verdadeiro e, em primeira mão, derrubar muros em simultâneo. 
Entre bizarrias e o redimensionar literal do “seio paterno”, a desconstrução do masculino e do feminino em dança de hormonas induzida,  resultado de experiências tresloucadas do Ministério do Desporto, em contexto neo-fascista, Diamantino Matamouros enverga, manipulado, o nacionalismo de uma realidade paralela, obediente a uma teoria quântica, delirante e cómica, simultaneamente trágica, notória na sua solidão e violência por parte das irmãs até à chegada de Rahim/Aisha e de uma “segunda oportunidade”.

Entrevista ao elenco por Herman José


Com banda sonora curiosa e um pouco "esquizofrénica", “Diamantino” vai desde Donna Lewis a sonoridades de filmes presentes em filmes como “The New World” de Terence Malick ou “The Brown Bunny” de Vincent Gallo, entre outras, misturando diversos géneros cinematográficos de forma hábil, fazendo lembrar atmosferas como “James Bond”, “Star Wars”, “Planeta dos Macacos” entre outros.
Uma comédia que nos faz soltar sonoras gargalhadas, que nos leva para “dentro” e que nos revela pura e simplesmente, de forma original, que o amor salva sempre...


Cartaz (Portugal)






quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

“Espelho meu, Espelho meu...existe Alguém mais Belo do que Eu? Sim - Nuno Nolasco...”

Trailer de "Bem Bom"

   A propósito da recente nomeação do jovem actor Nuno Nolasco para os Prémios CinEuphoria 2022, vimo-nos obrigados a ver a versão para cinema do filme realizado por Patrícia Sequeira, "Bem Bom" sobre o percurso meteórico e icónico da banda dos anos 80 "Doce". Já na versão televisiva, o destaque de Nuno Nolasco era notório. Desta forma, cremos ter havido um gentil equívoco, pois a corporalidade e presença de Nuno Nolasco na história faz dele actor principal e torna subsidiária a categoria de actor secundário. 

    Na realidade, Nuno é o verdadeiro actor "Space Blue", encaixado no mundo feminino salutar através da personagem do costureiro "Zé Carlos", arquitecto do feminino e, convínhamos, de um certo e determinado masculino. "Bem Bom" é um filme sobre quatro mulheres densas, mas onde se destaca, na sombra e na subtileza, um homem: Zé Carlos e, por conseguinte, Nuno Nolasco. É caso para inverter o antigo ditame e bradarmos aos quatro ventos: por trás de uma grande mulher, está sempre um grande homem. No entanto, nunca é demais destacar o trabalho de equipa do elenco, produção e argumento. Tudo tem textura e tecido corpóreo, mas Nuno Nolasco é tecelagem máxima na composição do seu personagem. "Estrela terrena", transporta o espectador para a discrição e subtileza de um subplot: a verdadeira história de amor na trama é entre Zé Carlos e Laura ou "Laurinha". Entre filia e ágape, Zé Carlos declara-se sob o manto da voz penetrante de Nuno: "eu faço tudo por ti, meu amor". São a verdadeira história de amor secreto de "Bem Bom" e a força motriz vem de uma química que se traduz, no caso de Nuno Nolasco, em pele como essência, muito para lá da ousadia, arrojo, sorriso e esgares superlativos. Zé Carlos é sonho, mas o prémio real pertence ao actor Nuno Nolasco, em jogo de espelhos constante, encolhendo-se e aumentando-se até se perceber simplesmente a sua alma protectora perante os mais excluídos. 


   Laura Diogo 
(Ana Marta Ferreira)



    Nuno Nolasco joga definitivamente "fora do baralho" e não é Joker, é "Às de Ouros". Ou na versão Zé Carlos implorando a Laurinha que nunca deixe de ser ela própria quando ela é tentada a desistir dos cabelos loiros na maior declaração de apoio e amor genuínos, em pura alquimia. Embora Nuno Nolasco esteja ausente a maior parte do tempo ao longo do filme e série, é realmente um dos actores mais presentes que nos presenteia, passando um propositado pleonasmo, com uma visão e ideia de representação insuperáveis incorporando a libertação feminina e, em simultâneo, também, do verdadeiro masculino em modo máquina de costurar. Esta história é antiga, clássica de tão moderna. E Nuno Nolasco é aquele tipo de actor que tem tudo para ser - talvez porque já o é - intemporal.

   Se Zé Carlos enverga elegantemente a sua chávena de chá e transpira Londres por todos os poros, Nuno Nolasco não lhe fica atrás se lhe retirarmos as máscaras ao ritmo mais afinado e em câmara lenta. Laura, a mais discriminada e frágil. Zé Carlos, o mais respeitador. 2021 viu nos grandes e pequenos ecrãs uma das mais belas histórias de amor. E neste sentido, a nomeação de Nuno Nolasco merece um prémio que à partida já está ganho: o prémio da liberdade. E muito provavelmente com direito a agradecimento à incondicionalidade e ao som de "Night" de Plastic People...

"Night", Plastic People



segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

"Angola é nossa!"



Bem-vindos ao Cineluso, mais culto do que oculto, caros leitores! 

Daqui em diante apresentaremos periodicamente um hino ao cinema português, quiçá séries também, viajando pelo passado, presente e futuro. 

E para começar, nada mais patriótico do que o icónico filme "Capitão Falcão" (2015) em destaque e modo hiper-patrióticos!



Capitão politicamente (in)correcto

       
Trailer




   João Leitão, realizador e argumentista de "Capitão Falcão", "demorou" cerca de seis anos a concretizar (mais propriamente a lutar por) este projecto arrojado: uma sátira ao Estado Novo, ao fascismo e ao ditador Oliveira Salazar.

   
João Leitão



Puto Perdiz e Capitão Falcão

   Inicialmente, a ideia era fazer uma série na RTP (sem sucesso; acabou em longa-metragem) na qual um super-herói de seu nome Capitão Falcão (Gonçalo Waddington) se encontrava ao serviço da pátria e fiel a Salazar (José Pinto), um herói virado para a acção, pouco estratégico, ao contrário do seu mestre, General Gaivota (Miguel Guilherme) e do seu companheiro de aventuras, significativamente mais sensato, apesar de silencioso, Puto Perdiz (David Chan Cordeiro).


Oliveira Salazar

   Uma espécie de Batman e Robin hiper-patrióticos, tendo que combater uma série de ameaças ideológicas, nomeadamente a maior de todas: a comunista. A juntar-se a tudo isso, estariam outros alertas e aventuras circunstanciais, nomeadamente: feministas, comuninjas e o grande confronto central com os Capitães de Abril que lutariam pela democracia em Portugal. Mas mais do que isso, seria a evolução deste "primeiro super-herói português", a sua jornada pessoal e trágico-cómica, sendo que, nas palavras do próprio realizador, estaríamos perante um "idiota".



Capitão Falcão e Major Al...Alberto
              

Capitães de Abril


   Interessa reflectir um pouco sobre os motivos pelos quais a série nunca viu a luz do dia. Motivos de orçamento? Motivos ideológicos? Seria uma série demasiado polémica, apesar de ser uma sátira? Repare-se que na altura em que o filme teve estreia houve gostos para tudo. Houve claramente quem não compreendesse o fundo do filme e se identificasse com Capitão Falcão, a personagem, o que é livre e legítimo. Não devemos ficar chocados com tal facto. Afinal é essa a verdadeira liberdade e democracia. No entanto, existe ainda um ideia de mau perder talvez em relação à ideia de Estado Novo; e aos anos que este representou, como que uma espécie de tabu, como se ainda fosse condenável brincar com isso ou até polémico. Vejamos, hoje, em 2022, (o filme é de 2015) num "reino" do politicamente correcto tão forte, particularmente numa ditadura do linchamento online tão alargado (o "problema" das minorias, sobretudo), como seria recebido um "Capitão Falcão" hoje? Primeiramente, importa definir a questão do politicamente correcto. Há que não confundir o politicamente correcto com uma mera questão de etiqueta (como por exemplo explica o próprio Capitão Falcão aos filhos aquando do ataque do comuninja durante o jantar. 

                                                          
Capitão Falcão e o seu legado



Comuninja

    A explicação é um exemplo de etiqueta). Interessa assim então frisar que a questão do politicamente correcto implica a ideia exagerada de que hoje tudo pode ser potencialmente ofensivo. Quem define afinal isso? Quais são os limites do humor? Meio caminho para não existir ofensa é encarar, tal como apresenta Ricardo Araújo Pereira na sua definição de humor, este como uma espécie de "burla" de raciocínio. Será um claro exagero e infantilidade de linguagem se se for demasiado literal e encarar certas cenas, por exemplo, em Capitão Falcão, como ofensivas.



Feministas e Comunista Transformista


   É nesses momentos que se ultrapassam as fronteiras ténues entre a liberdade de expressão do que gostamos para o que detestamos. Afinal de contas, não podemos cair no domínio do totalitarismo. Qual é a função primordial do humor afinal de contas? Muitos dizem que é tornar as coisas mais leves, mudar perspectivas, apurar o sentido crítico. Ora, Capitão Falcão é isso mesmo. Uma gargalhada do princípio ao fim, ágil e inteligente, para atenuar um passado que se quer esquecer, mas também para demonstrar uma certa "portugalidade" que a todos nós é inerente. "Capitão Falcão" é sobretudo um beijo caloroso à liberdade e à tolerância, ao rirmos de nós próprios, desajeitadamente, mas feito com um perfeccionismo notório: desde o elenco de excelência - destaque para todos, mas dois apontamentos "superiores" para Gonçalo Waddington e José Pinto. Destaque igualmente para a música a cargo de Pedro Marques. A realização é exímia, bem como o argumento de João Leitão e Nuria Leon Bernardo é hilariante e ainda o visual é irrepreensível.
Um filme de culto em todos os sentidos. Uma das melhores comédias portuguesas dos últimos anos que foi galardoada com vários prémios "Sophia". 
A não perder!    

                                 
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