sábado, 19 de fevereiro de 2022

Jardim do Éden

-SPOILERS- 

É impossível esquecer os momentos contemplativos com uma banda sonora que parece reconstruir a obra de Angelo Badalamenti a cargo de Justin Melland  (com um último episódio a superar todas as expectativas, tornando-se mesmo o melhor clímax e desfecho possíveis) da recente série que passou na RTP, "Cavsa Própria", pela mão de João Nuno Pinto. 

A série está recheada de um elenco de luxo: Catarina Wallenstein, Nuno Lopes, Gonçalo Waddington, Maria Rueff, Ivo Canelas, Margarida Vila-Nova (entre outros) conjuntamente com a revelação de novos talentos, entre os quais se destaca Afonso Laginha como protagonista "David".



Em boa verdade, tudo se centra em torno deste misterioso carácter de David: um "vilão" subtil, de persona naif, modelado e marcado pela relação progressivamente destrutiva dos pais que culminou em divórcio em tenra idade do jovem. Tudo isso contribuiu para a formação de uma personalidade tolhida pela dor e uma cisão interna profunda, sendo que o violoncelo parece ser o refúgio e o lugar do seu ser pleno e integrado.

 Na maior parte do tempo, David funciona pela metade: usando uma máscara manipuladora (veja-se a relação com a namorada, todo o seu comportamento em tribunal, a relação com a mãe protectora) decalcada e resultado da relação com o pai (inesquecível Ivo Canelas no papel de um Procurador irascível). Um pai narcisista e preocupado com o seu próprio umbigo que exigiu demasiado a David, sobretudo na sua masculinidade. E é aqui, queremos crer, que reside grande parte do gatilho e móbil para o crime. Nos complexos materno e paterno de David. Se a vítima, André, era homossexual e estava apaixonado por David e o poema de amor estava escrito no folheto dos ténis, sendo que violentamente David assassinou André e lhe retirou os ténis, em vez de o ajudar na sequência dos ferimentos pelos bullies e colegas de escola, é ir juntando as peças.

 Ora o que é interessante é que David seria eventualmente a pessoa mais próxima de André. Estavam ambos a fazer um trabalho sobre o Imperativo Categórico de Immanuel Kant, isto é, sobre a existência de uma moral e ética que se colocam acima das situações mais duvidosas em que exista um conflito de valores, uma espécie de lei natural. E toda a série tem como pano de fundo essa filosofia e esse dilema, no fundo, a "causa própria" da mãe. A questão é: a mãe deveria entregar o filho e dizer a verdade, ainda para mais sendo juíza. Mas optou por desrespeitar esse imperativo devido ao amor que sente pelo filho.

                                                                     Trailer


 Repare-se na cena em que Ana (Margarida Vila-Nova) revê os vídeos em bebé de David numa espécie de apelo à sua inocência e também sentimento de culpa familiar: não só pelo casamento ruinoso, mas também por encobrir um crime hediondo praticado pelo seu próprio filho. 

Quem é, afinal, David? David é a sua própria sombra, isto é, tudo que tem reprimido e em potencial dentro de si mesmo: por isso só é fiel à sua essência ou quando toca violoncelo ou quando se refugia na torre. E neste sentido, falamos em Éden como "queda": uma queda para a verdade e para o conhecimento, como a serpente que oferece a maçã. E até num aspecto dúbio semi-redentor. Mas a complexidade do dilema moral é apavorante: por um lado salva-se David da prisão, inteligente e cheio de sonhos, no fundo, salvando-se um "artista", ainda que em final aberto, através de um amor incondicional de uma mãe. Por outro, perdeu-se a vida de forma hedionda de outro jovem sensível que foi violentado por colegas e culminou na sua morte por motivo semi-fútil: não não era a cobiça dos ténis, mas sim o que eles representavam. A ideia de "chão" e a ideia provavelmente dos próprios dilemas de sexualidade que David eventualmente poderia ter tido. É também a queda e a quebra da inocência, tal como no Jardim do Éden: a cena da prisão em que David está semi-nu e simula que toca violoncelo: já se deu a sua queda e o desespero. A diferença é que a mãe o liberta pela incondicionalidade do seu próprio seio. 

Todo o último episódio é um murro no estômago, no sentido de que a contemplação rima com o dilema moral e deixa o espectador "médio" incomodado: a ocultação de provas por parte da mãe, o volte-face, a frieza de David (Afonso Laginha a superar-se) em Tribunal em contraste com a súplica na prisão "Ajuda-me mamã" e o facto de ter mentido e ter dito que era um acidente quando foi e não foi. Foi um impulso, sim. Mas foi encoberto: mas estava tudo em jogo. Mas apenas uma personalidade sociopata pode conceber viver o resto da vida com tal peso: veja-se o sorriso de David, no fundo um sorriso de liberdade acorrentada, quase fazendo lembrar a sequência de Joaquin Phoenix em "Joker" no carro da polícia. Fabulosa sequência após a libertação de David.

Existem vários jardins na série: o local do crime e o jardim da mãe. Esta ideia de "queda" é-lhes transversal, sem dúvida. Uma mãe que descobre e conhece finalmente o seu filho, diametralmente oposto à filha que inclusivamente David protege por esta ser "mais rebelde", ao contrário de si próprio: mais introvertido e um tanto ou quanto "perigoso" contra todas as expectativas. E, no fundo, é um jardim em que ocorre um crime paradoxalmente idílico (pelo menos na forma como é filmado).

A relação com o pai também é determinante, como já ficou brevemente referido. David tem um pai rígido: veja-se a cena do jantar em que David acaba por revelar de forma declarada a sua natureza reprimida ao apontar a faca ao pai. Num gesto que o pai encara como ex-libris de masculinidade em vez de estar atento àquele comportamento, sendo que é um alerta e não uma ideia de que "alguém lhe anda a fazer mal". No fundo, ninguém é inocente, assim como ninguém é culpado. David pode até ser, imagine-se, vítima das próprias circunstâncias. Um pouco como na ideia de abuso: quem foi abusado, mais tarde é o potencial abusador, sem desculpar obviamente as acções de David. 

Ainda não confirmadas estão 2 novas temporadas da série. 

Uma série subtil, filmada com qualidade cinematográfica. Há poucas "flores" destas neste jardim à beira mar plantado. Para ver e rever!

  

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Eles dão-nos tudo

 "Casos e Casos" abre a série de episódios mais ou menos suspeita (quiçá duvidosa) que parte da trupe do colectivo musical Cuca Monga andou a engendrar no ano passado sob a ideia original de Gonçalo Perestrelo e Francisco Ferreira (nas horas vagas em pleno set do filme concerto da incontornável banda Capitão Fausto - "Sol Posto" realizado por Ricardo Oliveira).

                                                     15 minutos de curta "de chorar" por mais


Quem não é fã de David Lynch dificilmente perceberá a homenagem "descarada" e redimensionada feita por toda a equipa a "Twin Peaks" e muitas outras referências mais ou menos óbvias. Mas não ficam por aqui. A ideia de novela mexicana com dobragem "puxa-se o autoclismo, ouve-se 2 segundos depois" faz com que "O Segredo Mendonça" ganhe uma camada humorística adicional. O exagero em harmonia com a contenção funciona de forma divertida, leve e simples. A banda sonora é apaixonante.

São 15 minutos de uma curta de culto inesquecível sendo que nenhum dos intervenientes se assume directamente como actor e onde a ficção se cola à realidade com um sentido de auto-crítica e ideia de rirmos de nós mesmos absolutamente premente como mensagem válida para o espectador para além do mais puro entretenimento e comunhão de um grupo talentoso de amigos. 

Nesta reflexão, em vez do habitual texto corrido, optámos por fazer uma "cerimónia de galardões": os "Prémios Mendonça". E os vencedores são: 

- Melhor Fotografia (tirada e revelada no ecrã): Tomás Wallenstein 

- Melhores quotes:  "Eu dou-te tudo!"

                                "Toma o chapéu!" 

                                "Cheirinho a defunto pela manhã" 

                                "Isto podia ter sido asfixiação"

                                "Ainda não digeri"

                                 "O Sr. está a esconder o churro por baixo dos lençóis"

                                 "Há coisas que cheiram a esturro e esta cheira a bosta"

                                 "Vocês não têm o direito de 'tarem aqui"

                                 "A verdade ficará entre nós"

                                 "Nós temos listas, 'tá bem?" 

                                 "Sou um homem-troféu pa ti!"

                                 "Tu já não me tocas"

                                 "Tás sempre fora a trabalhar"

                                 "Sim, mas não"  

                                  "Eu amo-te. Mesmo. Muito." 

- Melhor actor categoria drama: Horse, particularmente na cena do chuveiro

- Melhor olhar de soslaio para o espectador: Maegis  

- Melhor bebida: café

- Melhor atropelamento com sobreviventes e best quote: "palhaço, sai da frente!"

- Melhor sequência de automóvel conduzido a velocidade moderada: abanões de Manuel Palha como efeito especial na lateral

- Melhor cena melancólica: Manuel Palha ao piano antes do interrogatório

- Melhores palavras há muito tempo não ouvidas no ecrã: "Assunto Pesaroso"

- Melhor entrada sub-reptícia: Salvador Seabra de vermelho

- Melhor casal: Sr. Mendonça e Sr. Mendonça 

- Melhor beijo: Sr. Mendonça e Sr. Mendonça 

- Melhor cena: lua cheia

- Melhor homenagem a Alfred Hitchcock: sequência nocturna final

- Melhor cena aquática: Sr. Mendonça a boiar

- Melhor mal-entendido: todo o caso, sendo que "há casos e casos"



quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

"1986"- Das subtilezas da nostalgia



1986   

   O rascunho desta reflexão foi escrito à mão, em papel e com caneta, ao som do tema "Pensamos no Futuro amanhã" da série "1986" (2018) em repeat, a partir de um telemóvel e da plataforma de vídeos YouTube, num café de bairro, pleno de pessoas envelhecidas que seguramente viveram de alguma forma o ano de 1986.



   Nasci no segundo semestre de 1986, pelo que apenas absorvi de forma inconsciente resquícios desse ano: sons, cores, cheiros, sabores e texturas. Tudo aconteceu e ainda acontece através de experiência mediata em relação aos anos 80. Mas "1986" não é uma série fechada no seu tempo, apesar de não ser atemporal. No entanto, torna-se intemporal a cada episódio. O que é afinal o tempo e o espaço? É provavelmente uma mera dimensão psicológica, daí que seja infrutífero ser demasiado exigente com o que "1986" deve ou não representar, devendo antes fazer mais sentido, o que a série nos deverá fazer sentir. Especialmente se considerarmos "O" espaço que tanto motiva Marta - a miúda "betinha" e não só - (Laura Dutra) a sonhar com um futuro (im)possível, cheio de buracos negros e imprevisibilidade e que a une de forma improvável (?) a Tiago, o geek inadaptado (Miguel Moura e Silva) no visionamento do firmamento onde o amor cândido desabrocha e vai ultrapassando as mais diversas peripécias e barreiras em pleno cenário de agitadíssimas eleições presidenciais Freitas do Amaral vs. Mário Soares.

Marta
    Mas não podia faltar o grupo de personagens que vão viver desafios concomitantemente: Patrícia (Eva Fisahn) é a miúda gótica, Sérgio (Miguel Partidário) é o metaleiro e Gonçalo o beto rufia/bully da mota (Henrique Gil). Todas personagens mais ou menos tipo, ainda que possam ser previsíveis por vezes,  mas sempre multi-dimensionais, isto é, com relevo, desenham com o pincel da nostalgia um sorriso no espectador, comovendo com as suas idiossincrasias e passam por aventuras e desventuras para tudo mudar e, para ao fim ao cabo tudo ficar na mesma. Não somos todos nós uma evolução de nós próprios? Será que mudamos realmente? Talvez apenas nos aproximemos uns dos outros, derrubemos muros, afinal de contas em 1986 ainda existia o muro de Berlim, representativo disso é o pai de Tiago (Adriano Carvalho) e o pai de Marta (Gustavo Vargas): o último episódio é sintomático disso. Em "1986" as dores de crescimento da adolescência surgem amortecidas pelos recursos culturais evidentes de uma juventude que se refugia em variadas referências cinematográficas, musicais e educacionais. No fundo, aqui surge erigido o "mundo markliano" que muitos de nós já conhecemos.

As cinco personagens centrais de 1986
    "1986" tem ainda o condão de nos fazer reflectir sobre uma era em que não havia o digital e como as relações eram sincopadas e, talvez mais lentas e mais mágicas: a rádio, o jornal Blitz, o telefone fixo, a ausência de Internet, a existência rara de câmaras de filmar. Aliás, o episódio em que Sérgio utiliza a câmara de filmar do pai (o próprio Nuno Markl) é uma espécie de alusão à era digital e ao poder do smartphone e ao irrisório do conteúdo partilhado através de VHS, ainda para mais com conteúdo duvidoso adicional (pornografia do Videoclube de que é dono o pai de Marta). E assim se vão introduzindo também temas como a sexualidade na adolescência, de forma cómica, suave e sobretudo, com toda a naturalidade, como esta deve ser tratada. "1986" é uma comédia agridoce e, não sendo original, tem imensas referências sendo que "Freaks & Geeks" de Paul Feig tem algumas semelhanças e há inúmeras outras referências.

   Relativamente a questões técnicas: o décor é exímio, bem como o guarda-roupa e todos os pormenores de época, não sendo uma série que "cheira a bafio", ou seja, não é monótona nas suas escolhas, talvez porque existe a tal ideia de contemporaneidade temperada por um excelente bom gosto. 
   O casting de Patrícia Vasconcelos também encontrou uma química equilibrada, particularmente no elenco das cinco personagens principais.
A banda sonora é outro ponto forte, com a originalidade de captar uma sonoridade 80's com artistas contemporâneos, agarrando-nos de imediato, contando com Ana Bacalhau, Catarina Salinas, David Fonseca, João Só, Lena D' Água, Miguel Araújo, Rita Redshoes e Samuel Úria.

Tiago no centro de 1986

    Se aos primeiros episódios existe, devo confessar, alguma estranheza nos primeiros diálogos e algumas personagens, com o avançar da série, tudo isso se dissipa, havendo um crescendo no plot e nas prestações, havendo o efeito de colagem do espectador ao ecrã. É uma série que, sendo disponibilizada em streaming no site da RTP play quase obriga a um visionamento de um fôlego só e, no final, sabe a pouco e fica um pedido mais do que "tácito" do espectador de uma segunda série.
   Nuno Markl, Ana Markl, Filipe Homem Fonseca e Joana Stichini Vilela (argumento) juntamente com a realização de Henrique Oliveira presentearam-nos com um objecto televisivo de grande qualidade.
Com esta passagem por 1986, fica o desejo nostálgico de querermos viver para sempre...rebobinemos!


domingo, 13 de fevereiro de 2022

"Doidos" por Afonso

Afonso Laginha, actor, 19 anos, protagonista da série "Cavsa Própria" (realizada por João Nuno Pinto), actualmente em exibição na RTP (o último episódio é já no próximo dia 16 de Fevereiro pelas 21h00) aceitou gentilmente o convite para uma entrevista ao Cinelusoculto. 

A partir de Londres - onde estuda actualmente "Acting" há cerca de um semestre - estabeleceu-se uma conversa informal que se estendeu por quase três horas, plena de simplicidade, humildade e generosidade e, por conseguinte, humanidade. 

Afonso Laginha


Falou-se de (quase) tudo, sem perguntas preparadas ao "som" de sorrisos, falhas de bateria e frescura.

Se o pretexto era a série (sobre a qual reflectiremos em detalhe após a exibição do último episódio), o texto tornou-se Afonso: o actor, a sua promissora carreira e ainda o teenager em plena crise saudável pela "chegada aos 20" ainda este ano. 

Num universo paralelo, Afonso teria ido para "Programação", não nos espantemos. Mas tudo se precipitou para a actuação e por mérito próprio. Tudo começou no Liceu Camões e na sua revelação a Patrícia Vasconcelos o que desaguou no casting para "Cavsa Própria". "A arte salvou-me a vida", afirma de forma descontraída o rapaz magnético que enche o pequeno ecrã com o olhar paradoxalmente aquático, leve e pesado, dando corpo a David. David não se revelou personagem fácil e, na realidade, Afonso escreveu variados cadernos para composição de personagem e filmou cerca de 30 dias do total de 48 de rodagem.

Explicou-nos a sua opinião no que diz respeito à valorização do seu trabalho e de toda a equipa e revelou que, na sua perspectiva, para o tipo de orçamento que as produções portuguesas reunem, o trabalho que se consegue em tempo record é impressionante, inclusivamente com qualidade cinematográfica. Acabou por ser muito orgânica a nossa concordância na infelicidade de algumas críticas menos construtivas e de um certo estigma que ainda existe em relação à produção nacional. Mas todo esse aspecto se tornou secundário perante as progressivas revelações de vida e carreira de Afonso. 

Sem ordem em especial, procuraremos fazer um apanhado do que foi discutido e revelado. 

Uma das perguntas seminais foi, sem dúvida, o realizador da vida de Afonso: nada mais nada menos que Paul Thomas Anderson (Punch-Drunk Love no topo). Afonso justificou-se de forma concisa "não tem um único filme mau" e automaticamente tudo se precipitou para um tema de conversa recorrente, mas nada despiciendo: sonhos. Obviamente que trabalhar com P. T. Anderson é um sonho, mas o sonho primordial é ganhar o primeiro Óscar para Portugal na categoria de melhor actor ou melhor actor secundário, sendo que, uma vez mais, partilhámos visões semelhantes: talvez a de actor secundário fosse "match made in Heaven". 

Afonso Laginha


Afonso acha demasiado marcantes os actores que, com a sua ausência ou com presenças intensas, mas curtas, acabam por ser o pano de fundo de um filme (veja-se Brad Pitt em "Once Upon a Time in Hollywood" de Quentin Tarantino).  O que mais nos surpreendeu neste jovem actor foi o enraizamento com que falou do seu sonho: "Quero representar e colocar Portugal em termos culturais num lugar reconhecido mundialmente de forma distinta e valorizar as minhas raízes". Tudo sempre com a maior das humildades, cabeça no lugar e pés devidamente no chão, mas com todo o foco num objectivo que se pretende uma maratona (preferencialmente antes dos 30 anos) e não um sprint. Sediado em Londres actualmente, a sua cidade de eleição continua a ser Lisboa, ainda que em termos de hospitalidade Londres esteja "entre Lisboa e Porto". Mas Londres é o coração da produção e criatividade mundiais, sendo que Afonso aprecia a dimensão da cidade e sabe exactamente o quer: dedicar-se ao que mais gosta sem ilusão e sempre com paixão e trabalho. 

No entanto, obviamente que em Portugal tem os seus realizadores de eleição: Marco Martins, João Nuno Pinto, Manuel Pureza, Tiago Guedes, entre outros. 

A versatilidade de Afonso é de assinalar, não só mental, mas também física: é um jovem que consegue ser excêntrico, sendo clássico. E assim pretende fazer o mesmo na sua carreira. Desde que o projecto lhe interesse, tenha qualidade ou até seja arrojado (quem nunca sonhou com uma produção A24 atire a primeira pedra) Afonso aceitará, desde que, no fundo, lhe faça sentido. Até uma comédia romântica ao estilo de "Doidos por Mary" seria um "sim redondo", bem como um sonho entre o inocente e lascivo de ser capa da GQ, destacando em especial uma espantosa produção de Robert Pattinson, também um dos seus actores favoritos, juntamente com Adam Sandler, Philip Seymour Hoffman, Daniel Day-Lewis, Andrew Garfield, Jim Carrey, Samuel L. Jackson, Christian Bale, William Dafoe ou Joaquin Phoenix. 

As gargalhadas foram impossíveis de controlar quando surgiu, confessou Afonso, mais uma vez a "comparação a Timothée Chalamet", sendo que isso é um elogio e não é, pois Afonso tem perfeita noção que é simplesmente "ele próprio". No entanto, confidenciou-nos que em Londres havia convencido alguém de que era realmente Timothée.  

Cinema é, definitivamente a sua maior paixão, mas em teatro a sua força motriz será sempre, nas suas próprias palavras, "o desafio".   

Afonso Laginha


Relativamente a referências invariavelmente destacou vários dos actores do elenco de "Cavsa Própria" reflectindo sobre o privilégio de poder contracenar com muitos dos seus ídolos ( Ivo Canelas, Margarida Vila-Nova, Nuno Lopes, Gonçalo Waddington, Maria Rueff só para nomear alguns) e jovens actores também, mas deve um especial agradecimento nada mais nada menos à actriz que dispensa apresentações: Beatriz Batarda pelo suporte e conselhos. O respeito, a diversão e o prazer reinaram na rodagem e Afonso confirmou a química que se faz sentir no ecrã, afirmando que "isso nem sempre acontece". 

Afonso revelou ainda, em plena conversa, a sua aptidão por muitos desconhecida para as imitações (nomeadamente uma imitação exímia da personagem do "Chato" de Nuno Lopes) e para a comédia - o que se tornou surpreendente, fresco e divertido, tendo em conta a carga dramática que a personagem David comporta. Digamos que Afonso é um actor completo, sempre com a noção que está a aprender e a beber de tudo e todos. "Sim, acho que tenho a cabeça no lugar e isso é uma vantagem", apesar de nos ter confessado (o que nos deixou enternecidos pela consciência e maturidade) que quando iniciou "Cavsa Própria" o seu ego elevou-se um pouco, mas que, depois, conseguiu lidar com a situação e recentrar-se.

Falou-se de limites: nunca fará pornografia. 

Num projecto de composição de personagem numa produção comum gostaria de sentir, no entanto, a ultrapassagem do limite no envolvimento com a composição de personagem. No entanto, sem entrar em processos de auto-destruição. É simbólico que Afonso represente uma ideia pessoal e profissional de masculinidade saudável, apesar de nos ter revelado que fez um casting para uma personagem intragável quase pedindo desculpa. Mas obviamente que se sente fascinado por vilões e até filmes de terror (destaca "Hereditary") - não deixando David de certa forma, de ser um vilão dúbio. Mas também adora super-heróis, nomeadamente elegendo o Homem-Aranha como seu favorito. 

Afonso Laginha


Na música tem vários talentos e gostaria de ter uma banda de covers, mas os seus "heróis" passam pelos Clã e invariavelmente Manuela Azevedo e, claro, Manel Cruz que, em tom de piada, "trocaria" de bom grado por uma viagem que já fez ao Japão. Afonso gosta, de facto, de viajar, gostava de ir à Grécia, destaca Itália e gostaria de passar algumas temporadas em Nova Iorque e Los Angeles. 

Afonso apesar de se considerar "preguiçoso" e até meio "caótico", por vezes nem o seu próprio quarto arruma contrariando a velha máxima do psicólogo canadiano Jordan Peterson de que "devemos arrumar o nosso quarto" tem um grande compromisso e obsessão com o trabalho. E vive com 7 pessoas em Londres, encarando mais a ideia de "arrumação interna" do que a redução ao exterior. E nesse sentido, Afonso parece ter a âncora que necessita para domesticar o tal aparente caos. Revelou-nos, de forma curiosa, ainda, que usa uma aplicação no telemóvel para fazer listas relacionadas com o trabalho e filmes em geral. Trocaram-se títulos, entre os quais "A Dangerous Method" de David Cronenberg que numa bonita sincronicidade já constava na lista de Afonso.

Relativamente às críticas: considera-as sempre construtivas, sendo bom o feedback e valoriza particularmente aquelas que acrescentam algo para melhorar. No entanto, muitas delas podem ser más em termos de autorictas para o espectador, por exemplo, há que dar espaço para o espectador ter o seu próprio sentido crítico. 

Afonso Laginha



Afonso adoraria saber mais sobre Filosofia e Psicologia, mas neste momento está a debruçar-se sobre leituras bastante focadas em "Acting". No entanto andou a ler "Dune" numa cómica coincidência e nova comparação a Timothée Chalamet.  

É definitivamente uma pessoa que prefere gatos (pela personalidade) e tem um: o Morgan.

No que toca a questões religiosas considera-se entre o ateu e o agnóstico e acabámos por discutir que o que vemos no exterior pode ser sempre, apesar de inexplicável, uma inevitável projecção interna, por isso e nas suas próprias palavras, "convém não ter muitas esperanças", afirmou Afonso entre sorrisos. 

Falámos ainda da importância da cultura e da sua relação severa com o poder político e do seu papel e importância na saúde mental e até física, não fosse um dos seus "guilty pleasures" analisar pessoas no comboio e imaginar as suas vidas.

As suas comidas favoritas são canelones e lasanha pois era o que a mãe lhe fazia em criança. 

Afonso a partir de Londres


Afonso gosta e representa a tal ideia supra-mencionada de masculinidade redimensionada.

Relativamente a métodos demonstra uma grande curiosidade pela técnica de Meisner e esteve para fazer formação nessa área que infelizmente teve que cancelar, mas estará logicamente no seu caminho, bem como o método Strasberg ou simplesmente O Método. 

Afonso representa e tem tudo para ser um dos melhores actores (sendo que já o é) da sua geração e afirma que a melhor atitude é mesmo ter prazer no trabalho e importarmo-nos pouco com o peso das coisas. Afonso corporaliza leveza e juventude, entre o inocente e o eloquente, entre o descontraído e com toda a rebeldia no sítio certo com cabeça e no coração. 

David (Afonso Laginha) na série "Cavsa Própria"

 




domingo, 6 de fevereiro de 2022

O diferente que é igual - "Tornar-se um Homem na Idade Média"

 "Tornar-se Um Homem na Idade Média" foi um dos três vencedores na categoria de curtas em competição em Roterdão com o prémio "Ammodo Tiger" de Pedro Neves Marques.

O filme encontra-se, infelizmente, bloqueado para o território nacional, explicou a organização, pelo que, lamentavelmente não tivemos acesso ao visionamento em Festival da curta em questão. 

Ainda assim, o Cinelusoculto gostaria de dar os parabéns à equipa e a honrosa representação no festival. Tentaremos ver a curta no circuito nacional logo que possível. 

Relativamente à Cerimónia de entrega de prémios - desta vez totalmente online e readaptada pelo segundo ano consecutivo devido à pandemia que vivemos, tudo decorreu com a devida simplicidade e coordenação profissional em mais uma edição do Festival Internacional de Roterdão que decorre desde 1972.

https://vimeo.com/381411715

Excertos da curta e uma sinopse que nos deixa extraordinariamente curiosos, não "reduzindo" o filme ao reduto "queer", bem pelo contrário, levando à necessidade de pensar sobre questões cada vez mais prementes nos tempos que correm.  

O mote é simples, apesar de aparentar complexidade: Mirene e André, Carl e Vicente são dois casais nos seus trintas. Por um lado, um casal heterosexual lida com problemas de infertilidade, por outro, um casal homossexual tenta ter um bebé biológico. E Pedro Neves Marques filma toda a dinâmica que se estabelece entre as personagens em questão. Estamos convictos que, nada mais nada menos conduzirá a um questionamento sobre a verdadeira (?) dinâmica entre o masculino e feminino dentro da personalidade do indivíduo. 


Pedro Neves Marques no momento da vitória do prémio


Uma curta-metragem que conta com o seguinte elenco: Vítor Andrade, Zé Bernardino, Isabel Costa, Joana Manuel, Pedro Neves Marques e Nuno Nolasco. 

O filme é ainda candidato, neste momento, ao Prémio Europeu de Cinema para as curtas-metragens, sendo pioneiro na vitória no Festival Internacional de Roterdão.





quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

A Residencial da simplicidade - "Madrugada" (2021) de Leonor Noivo

 Entre as 16 curtas presentes no Festival Internacional de Cinema de Roterdão encontrava-se "Madrugada" (Dawn) na secção de curtas Ammodo Tiger. Apesar de não ter vencido um dos três prémios na respectiva secção, é uma curta-metragem realizada por Leonor Noivo que prima pela subtileza desde o primeiro segundo. A premissa é singela, tal como a beleza da Natureza que a equipa se propôs retratar: Maria desapareceu, trabalhava numa Residencial sombria e a sua filha tenta reconstruir o que se terá, afinal, passado com a mãe num retrato de uma relação quase silenciosa entre uma mãe que se degradou progressivamente pelo incumprimento do seu papel enquanto mulher: "Eu tenho raízes", afirma. Impossível não associar a curta a uma ideia quase perdida do papel feminino ligado ao telúrico e a sua degradação numa sociedade capitalista complexa em que a classe trabalhadora trabalha de sol a sol, a meia luz, entrando e "saindo" de madrugada. 

A água final "imprópria para banho" - não mais que uma água transformadora - na qual Maria eventualmente mergulha as suas "escamas", bem como o seu desejo de ser peixe, e se faz então ser anfíbio forçado, rejuvenescendo através de crianças e jovens salutares, em sério contraste com a sua erosão física e emocional da eterna insatisfação resultante do incumprimento do seu papel essencial enquanto mulher e ser humano. 

Maria nunca dorme e, talvez, em clara psicose, tudo se precipite para um final esperado: a morte (ou renascimento) num travestir de metáfora para os extremos da sociedade capitalista, o isolamento, a quebra das relações familiares, as crenças profundamente arreigadas de um passado que insiste em impermeabilizar um futuro fluído.

Maria é um grito mudo, um pedido de socorro. Isabel, sua filha, percorre-lhe as pegadas num filme que tem variadas referências,  intencionais ou não: desde "Noite Escura" (2004) de João Canijo, aqui quase numa ideia de "prostituição" bem mais requintada e quase tão destrutiva que a real prostituição, lenta e cortante porque muda e em câmara lenta, a "Lost Highway" (1997) de David Lynch. 

Aqui todo o feminino sacrificado e deformado é filmado. Sem pompa, mas com toda a circunstância. E é isso mesmo que o filme é: circunstancial - desde o cadáver sobre a cama na Residencial aos testemunhos das mulheres que trabalham no local. 

A noite e o dia, o solar e o lunar: o dióxido de carbono das plantas que asfixia Maria que estão e não estão presentes num dos parcos diálogos entre mãe e filha em casa.

Leonor Noivo filma ainda uma ideia de liberdade acorrentada com extraordinário bom gosto: uma realidade crua e nua, mas embelezada pela natureza dos riachos, das copas das árvores e até das escamas de Maria. É uma ode ao envelhecimento precoce, ao vazio e aos perigos dessa (ir)realidade, às vidas que ficam pelo caminho. Está longe de ser um filme com leveza, mas tem tudo de beleza. A beleza da rotina e o desejo de uma personagem de ter apenas uma vida plena e feliz, mediada pela simplicidade, in extremis, encontrada quiçá, numa morte física e simbólica pois muito da mise en scene é, provavelmente, projecção e não realidade. 

Este filme ganhou o prémio de melhor curta na competição nacional do Festival Internacional de Curtas de Vila do Conde em 2021.



Festival Internacional de Cinema de Roterdão

 



         Edição 51 do Festival Internacional de Cinema de Roterdão

26 de Janeiro a 6 de Fevereiro


Estamos presentes no Festival Internacional de Cinema de Roterdão com especial enfoque no cinema português.